quinta-feira, 29 de abril de 2010

Ardes e a Necrópole Intestinal



Sobre savanas infindáveis que ardiam sob a fúria do imponente Leão Ardes, os leitos da carnificina estendiam-se sobre as ervas como um sumo extraído do alívio. Alívio este que se sentia no despir de seres que foram anulados pela sua própria corrupção e sujidade mental, seres estes tornados irracionais que durante milénios tiveram a arrogância de assumir o seu lugar numa falsa e indisciplinada civilização. A sua superioridade deu lugar a seres errantes, desorientados e ruidosos que nenhum animal na sua devida animalidade conseguiria suportar.
Desta forma, Ardes e a sua imponente armadura negra decorada com grossas e pontiagudas agulhas assombravam estes minúsculos e insignificantes seres que mais tarde ou mais cedo, acabariam por ser contemplados por sinistras mandíbulas.
Não existiam eufemismos possíveis para caracterizar a ira deste Leão, hipérboles seriam mais apropriadas na descrição detalhada de um animal como este, com o seu pêlo, juba pálida e olheiras que pareciam escavar-se nos seus próprios olhos.
Mas seria este leão passivo a uma silhueta feminina humana e mais que tudo, enganadora? Todo o humano era alvo perante os olhos da fome desequilibrada deste colosso. Sendo assim, Ardes impôs as suas atrocidades perante esta silhueta elegante de mulher, cujos olhos mergulhados numa espécie de orvalho marinho não serviram para motivar a piedade deste grotesco ser.
Saboreando ele os seus habituais e magnânimos bifes de uma suposta vitória mais do que somada, os frágeis lábios da rapariga ainda se moviam em sua elegância, recusando o seu estado de invalidez física perante o ataque.
O leão travou os seus sedentos apetites para ouvir o discurso da rapariga, as palavras iriam pesar...principalmente no interior digestivo deste Leão:

" Este extermínio foi edificar uma extensa necrópole que não conheceu sabores ou essências, conheceu restos, conheceu puras e simples lixeiras..."

Ardes, ao dissolver os seus olhares sobre os orvalhos marítimos dos olhos dela, a sua consciência pesou e este engoliu-se a si próprio. E assim conheceu o seu armazém necrológico, as catacumbas sucessivas dentro do seu intestino. No tecto podia observar as suas próprias vilosidades como uma espécie de ornamento arquitectónico e as paredes eram a acumulação de túmulos ao longo de uma dieta repetitiva. O problema não estava na quantidade de vítimas armazenadas, a grande problemática estava na guerra que ele tinha instalado no seu interior, parecia ser quase infindável. Mas a partir do momento que ele conheceu o rosto desta bela rapariga no seu colo, admitiu uma espécie de animalidade que afinal existia no interior das suas aurículas e ventrículos. Desta forma, Ardes deitou os seus dois dedos grossos sobre a sua língua grossa e carnuda, vomitando em glória os restos da rapariga que secaram sobre a sua pele e lhe reconstituíram a monumentalidade bela da sua silhueta. E lentamente as suas feições de rapariga começavam a desaparecer do seu rosto, um vasto terreno de pêlos crescia elegantemente por todo o seu corpo assumindo-se como uma loba cujos olhos eram pêndulos solares. A animalidade de Ardes esteve no acto de admitir que tal ser merecia ser armazenado em crepúsculos extensos e territoriais. A loba gozou a decadência dos humanos, ou seja, a sua inexistência e a sua passividade foi um prazer de carne e alma, passividade esta que não é de maneira nenhuma condenável. Religiosidade anulada e inútil, o natural atingira o pleno apogeu, agora só bastava contemplar.

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